Felicidade nas telas - Contardo Calligaris
23 Setembro 2010
Felicidade nas telas
Contardo Calligaris
fonte: http://contardocalligaris.blogspot.com/2010/09/felicidade-nas-telas...
A necessidade de mostrar ao mundo um semblante feliz é uma das grandes fontes de infelicidade |
laptop e entra no Facebook.
Ela não procura amigos e conhecidos para aliviar o clima solitário e
deprê do fim do dia. Essa talvez tenha sido a intenção nas primeiras
vezes, mas, hoje, experiência feita, ela entra no Facebook, à noite,
como disse, para curtir sua fossa. De que forma?
Acontece que, visitando as páginas de amigos e conhecidos, ela descobre
que todos estão muito bem: namorando (finalmente), prestes a se casar,
renovando o apartamento que sempre desejaram remodelar, comprando a
casa de praia que tanto queriam, conseguindo a bolsa para passar dois
anos no exterior, sendo promovidos no emprego ou encontrando um novo
"job" fantasticamente interessante. E todos vivem essas
bem-aventuranças circundados de amigos maravilhosos, afetuosos,
alegres, festeiros e sempre presentes, como aparece nas fotografias
postadas.
Minha amiga, em suma, sente-se excluída da felicidade geral da nação
facebookiana: só ela não foi promovida, não encontrou um namorado
fabuloso, não mudou de casa, não ganhou nesta rodada da loto. É mesmo
um bom jeito de aprofundar e curtir a fossa: a sensação de um
privilégio negativo, pelo qual nós seríamos os únicos a sofrer,
enquanto o resto do mundo se diverte.
Numa dessas noites de fossa e curtição, minha amiga, ao voltar para sua
própria página no Facebook, deu-se conta de que a página não era
diferente das outras. Ou seja, quem a visitasse acharia que minha amiga
estava numa época de grandes realizações e contentamentos. Ela
comentou: "As fotos das minhas férias, por exemplo, esbanjam alegria;
elas não passaram por nenhum photoshop, acontece que são três ou quatro
fotos "felizes" entre as mais de 500 que eu tirei".
Logo nestes dias, acabei de ler "Perché Siamo Infelici" (porque somos
infelizes, Einaudi 2010, organizado por P. Crepet). São seis textos de
psiquiatras e psicanalistas (e um de um geneticista), tentando nos
explicar "por que somos infelizes" e, em muitos casos, por que não
deveríamos nos queixar disso.
Por exemplo, a infelicidade é uma das motivações essenciais; sem ela
nos empurrando, provavelmente, ficaríamos parados no tempo, no espaço e
na vida. Ou ainda, a infelicidade é indissociável da razão e da
memória, pois a razão nos repete que a significação de nossa existência
só pode ser ilusória e a memória não para de fazer comparações
desvantajosas entre o que alcançamos e o que desejávamos inicialmente.
Não faltam no livro trivialidades moralistas sobre o caráter insaciável
de nosso desejo ou evocações saudosistas do sossego de algum passado
rural. Em matéria de infelicidade, é sempre fácil (e um pouco tolo)
culpar a sociedade de consumo e sua propaganda, que viveriam às custas
de nossa insatisfação.
Anotei na margem: mas quem disse que a infelicidade é a mesma coisa que
a insatisfação? E se a infelicidade fosse, ao contrário, o efeito de
uma saciedade muito grande, capaz de estancar nosso desejo? Que tal se
a infelicidade não tivesse nada a ver com a ansiedade das buscas
frustradas, mas fosse uma espécie de preguiça do desejo, mais parecida
com o tédio de viver do que com a falta de gratificação? Em suma, você
é infeliz porque ainda não conseguiu tudo o que você queria, ou porque
parou de querer, e isso torna a vida muito chata?
Seja como for, lendo o livro e me lembrando da fossa de minha amiga no
Facebook, ocorreu-me que talvez uma das fontes da infelicidade seja a
necessidade de parecermos felizes. Por que precisaríamos mostrar ao
mundo uma cara (ou uma careta) de felicidade?
1) A felicidade dá status, como a riqueza. Por isso, os sinais
aparentes de felicidade podem ser mais relevantes do que a íntima
sensação de bem-estar;
2) além disso, somos cronicamente dependentes do olhar dos outros.
Consequência: para ter certeza de que sou feliz, preciso constatar que
os outros enxergam minha felicidade. Nada grave, mas isso leva a algo
mais chato: a prova de minha felicidade é a inveja dos outros.
O resultado dessa necessidade de parecermos felizes é que a felicidade
é este paradoxo: uma grande impostura da qual receamos não fazer parte
e que, por isso mesmo, não conseguimos denunciar.
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