por Wilson Klain, quarta, 2 de Novembro de 2011 às 07:14
Era pelo fim do outono de 1902. Sentado sob os antiqüíssimos castanheiros dos bosques de Viena eu lia um livro. Tão absorvido estava pela leitura que mal percebia o tempo passar.
O livro havia me caído às mãos, despretensiosamente, mas me capturava profundamente. Tratava-se de “A interpretação dos Sonhos” do Dr. Sigmund Freud. Li-o atentamente. Senti que algo em mim se apresentava como uma necessidade tremenda de olhar nos olhos deste homem. Como não podia, resolvi escrever-lhe uma carta pedindo que avaliasse minhas intenções de me juntar a ele na investigação da mente humana. Na carta registrei meus pensamentos e minha disposição para penetrar na complexa existência humana.
Após algumas longas semanas obtive a resposta.
Viena, 1908.
Viena, 17 de fevereiro de 1903.
Prezadíssimo Senhor
Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus projetos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica, à projeção de uma vida. Não há nada menos apropriado para tocar num projeto de vida do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são os projetos de vida; tratam-se de seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que suas idéias não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de singularidade. É o que sinto com a maior clareza no último parágrafo onde o senhor afirma ter a intenção de penetrar a alma humana e dela retirar tudo o que nela há. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. Algo como uma gravura que não sentiu o peso do pincel e a limitação da coloração.
No parágrafo mais íntimo de sua carta, há talvez uma espécie de parentesco com um grande solitário que esteja pedindo expressão. No entanto, as idéias nada têm ainda de próprio e de independente.
Sua amável carta não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler suas idéias sobre o inconsciente. Pergunta-me se pode ser um bom psicanalista. Pergunta-o a mim? Pois bem, usando da licença que me deu de aconselhá-lo peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda aventurar-se nessa tarefa; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado penetrar no âmago do desconhecido? Isto acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a me dedicar ao humano?" Escave dentro de si uma resposta profunda.
Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza do homem. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde.
Não pense somente na pureza d’alma. Um de seus parágrafos demonstra sua parcial compreensão da Psicanálise a respeito disso. Tudo compreender não é tudo perdoar. Pelo contrário! A psicanálise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que devemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância para com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento.
Não pense o senhor que o psicanalista está acima de tudo, acima inclusive dos preconceitos. Lembre-se que Aquiles seria insuportável, não fosse por seu calcanhar. Não se esqueça que nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza; mas com freqüência são também a fonte de nossa força.
Pense sempre em relatar para si suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza - relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se analisar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante presente em seu tempo para extrair as suas riquezas. Lembre-se sempre que sua infância, presente em seus minutos atuais, é uma esplêndida e régia riqueza, um tesouro. Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: sua vida há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, ainda pensar que pode aventurar-se nas agruras do mundo, não mais pensará em perguntar seja a quem for se pode ser um psicanalista.
Uma análise é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve dedicar-se a esta tarefa árdua na direção do desconhecido. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la imediatamente. O Psicanalista com efeito, deve ser um mundo para si mesmo a explorar.
Mas talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar psicanalista. (Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem esta aventura para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo muito mais do que lhe posso exprimir.
Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.
Restituo-lhe ao mesmo tempo a carta que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia
Seu, Sig Freud
Obs. Esta carta que nunca foi escrita, com esses propósitos e para essa pessoa, na verdade é uma adaptação inspirada nas “cartas a um jovem poeta” de Rainer Maria Rilke e na entrevista concedida por Freud à George Sylvester Viereck.
Wilson Klain
Essa carta está a disposição em http://www.facebook.com/notes/wilson-klain/carta-a-um-jovem-psicanalista/237532892967209
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