247 - Não poderia ser mais atual. No momento em que o "julgamento do século" chega à sua hora decisiva, um livro disseca a atuação dos meios de comunicação na Ação Penal 470, que trata do chamado "mensalão". Organizado por Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina, ele foi feito a partir de diversas entrevistas com advogados de defesa, que atuaram no caso. E se faltava alguma prova da pressão exercida pela mídia, ela veio neste fim de semana, em que Veja ameaça crucificar Celso de Mello, caso o decano contrarie seu propósito político (leia mais aqui).
Com prefácio do professor Dalmo Dallari, o livro "AP 470: análise da intervenção da mídia no julgamento do mensalão a partir de entrevistas com a defesa" é divulgado em primeira mão pelo 247. Confira, abaixo alguns trechos.
1. Do Prefácio do Professor Emérito Dalmo de Abreu Dallari:
“O Julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal, processo que foi batizado pela imprensa de “mensalão”, ganhou as primeiras páginas da imprensa desde os primeiros dias, sendo tratado como um espetáculo mais do que como um caso jurídico em que se fossem apurar acusações de ilegalidades praticadas por agentes públicos e privados em prejuízo da normalidade jurídica e do patrimônio público. No decorrer do julgamento ficou evidente que o espetáculo não havia sido criado por acaso, mas tinha o propósito de estimular a opinião pública a exigir a condenação dos acusados, deixando de lado as exigências de Justiça e de respeito aos preceitos constitucionais e legais. Eram quarenta os acusados e entre eles havia muitos que tinham posição importante no quadro das disputas político-partidárias, alguns dos quais ainda ocupavam posições de relevo em órgãos do governo e da Administração Pública.
Alguns elementos objetivos do conjunto de circunstâncias envolvidas no procedimento judiciário são reveladores da interferência de fatores não-jurídicos na condução do processo e no julgamento da Ação Penal 470. Para embasar essa afirmação basta assinalar um ponto de extrema relevância jurídica, que deixou muito evidente que naquele caso o Supremo Tribunal Federal não estaria cumprindo aquilo que a Constituição define como sua função precípua, que é a guarda da Constituição. O que ocorreu, e que é de fundamental significação jurídica, é que por meio da Ação Penal 470 os 40 réus foram denunciados e começaram a ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal, sem terem passado por instâncias inferiores. E entre eles estavam muitos que não tinham cargo público nem exerciam função pública quando, segundo a denúncia, teriam participado dos atos que deram base à propositura da ação pelo Ministério Público.
Essa impropriedade jurídica foi suscitada, com muita precisão e objetividade, pelo Ministro Ricardo Lewandowski, na fase inicial do julgamento. Entretanto, por motivos que não ficaram claros, o relator, Ministro Joaquim Barbosa, respondeu asperamente ao questionamento do Ministro Lewandowski e rejeitou a arguição de incompetência do Supremo Tribunal Federal. E a maioria dos Ministros foi favorável à continuação do julgamento de todos os acusados pelo Supremo Tribunal. No entanto, a Constituição estabelece expressamente, no artigo 102, os únicos casos em que o acusado, por ser ocupante de cargo ou função pública de grande relevância, será julgado originariamente pelo Supremo Tribunal Federal e não por alguma instância inferior. No inciso I, dispõe-se, na letra “b”, que o Supremo Tribunal tem competência para processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, “o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador Geral da República”. Em seguida, na letra “c”, foi estabelecida a competência originária para processar e julgar “nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente”.
Como fica muito evidente, pela simples leitura dos dispositivos constitucionais, o Supremo Tribunal Federal não tem competência jurídica para julgar originariamente acusados que nem no momento da prática dos atos que deram base à denúncia, nem por ocasião do julgamento, ocuparam qualquer dos cargos ou funções enumerados no artigo 102. Para que se perceba a gravidade dessa afronta à Constituição, esses acusados não gozam do que se tem chamado “foro privilegiado” e devem ser julgados por juízes de instâncias inferiores. E nesse caso terão o direito de recorrer a uma ou duas instâncias superiores, antes de chegar ao Supremo Tribunal Federal, o que amplia muito sua possibilidade de defesa. Tendo-lhes sido negada essa possibilidade poderão alegar, se forem condenados em definitivo pelo Supremo Tribunal, que não lhes foi assegurada a plenitude do direito de defesa, que é um direito fundamental da cidadania internacionalmente consagrado. E poderão mesmo, com base neste argumento, recorrer a uma Corte Internacional pedindo que o Brasil seja compelido a respeitar esse direito. A imprensa, que no caso desse processo vinha exigindo a condenação dos acusados, não o julgamento imparcial e bem fundamentado, aplaudiu a extensão inconstitucional das competências do Supremo Tribunal e fez referências muito agressivas ao Ministro Lewandowski, que, na realidade, era, no caso, o verdadeiro guardião da Constituição
Além desse ponto, que é de extrema relevância e cujo tratamento já evidencia a interferência de fatores não-jurídicos, muitos outros questionamentos jurídicos foram apresentados no curso do processo. Justamente sobre tais questionamentos este livro contém elementos informativos de grande relevância, permitindo a quem tem formação jurídica básica o conhecimento e a avaliação dos principais argumentos dos defensores dos réus. Com base nesses elementos será possível avaliar a consistência jurídica das decisões condenatórias e analisar os principais argumentos jurídicos relativos à Ação Penal 470, avaliando, a partir daí, o desempenho do Supremo Tribunal Federal num processo de grande expressão política.
Paralelamente a isso, o material reunido nesse livro será extremamente valioso sob vários outros aspectos. Antes de tudo, e objetivamente, tem o valor de um registro para a história. A par disso, fornece elementos para a consideração de diversos pontos de grande relevância relacionados com a publicidade das questões jurídicas e, de modo especial, dos julgamentos pelo Poder Judiciário. Como foi assinalado por vários dos advogados cujos depoimentos estão aqui reunidos, a imprensa teve enorme influência na criação de um quadro de espetáculo que, por si só, comprometeu a objetividade dos julgamentos. E uma das características desse tratamento escandaloso, com informações imprecisas ou mesmo erradas foi a ostensiva exigência de condenação dos acusados, como sendo a única decisão justa, antes mesmo de conhecidos os argumentos dos defensores.”
2. AP 470: análise da intervenção da mídia no julgamento do mensalão a partir de entrevistas com a defesa - texto de Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina
Durante todo o julgamento da Ação Penal 470/MG, fruto da denúncia do Procurador-Geral da República Antonio Fernando de Souza, sobre o rumoroso caso que ficou conhecido como “mensalão”, fiquei pessoalmente impressionado com a cobertura midiática. O Jornal Nacional, com milhões de espectadores, durante um semestre inteiro tinha entradas ao vivo de Brasília explicando, ao seu modo, os acontecimentos do dia a dia no julgamento de uma ação penal.
Não era só, a TV Justiça transmitia também ao vivo debates acalorados, para dizer o mínimo, entre os ministros. Em sua edição 2290 a revista Veja trouxe como reportagem de capa a história da vida do Ministro Joaquim Barbosa, alçado ao posto de herói nacional, enquanto o Brasil era induzido, em conjunto, a demonizar o Ministro Ricardo Lewandowski.
De uma vez, os ministros passaram a fazer parte do imaginário popular, como defensores da democracia. O Ministro Joaquim Barbosa, mesmo declarando que não tem tais intenções, figurou em pesquisas de intenções de voto para presidente realizadas pelo Instituto Datafolha, ministros davam entrevistas com frequência nunca antes vista e réus iam votar escondidos nas eleições de 2012. No meio de tudo isso, estava lá a ação penal.
Petrus Borel anotou que “as vaidades e as paixões são os senhores do mundo”, a ação penal 470 experimentou isto: pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal parou por tanto tempo para julgar uma única causa. Se uma pesquisa tivesse sido feita naquele momento a maioria do povo brasileiro condenaria todos os acusados, refletindo neles as frustrações com a política nacional.
Apenas três réus (Valdemar da Costa Neto, João Paulo Cunha e Pedro Henry) gozavam da posição do foro privilegiado no julgamento. Mesmo assim, por nove votos a dois, o Supremo decidiu pelo não desmembramento da ação. Um dos entrevistados aqui afirmou que o STF precisava julgar esta ação para demonstrar efetividade ao povo brasileiro. Verdade ou não, pela primeira vez o IBOPE incluiu a instituição no seu Índice de Confiança Social, que mede a confiança da população nas instituições brasileiras, e o Tribunal ficou em terceiro lugar, atrás do Corpo de Bombeiros e da imprensa, respectivamente.
Em meio aos debates acalorados na Corte, “especialistas” apontavam nas transmissões de canais de notícias 24h os possíveis desdobramentos do julgamento e faziam previsões sobre a sentença e até sobre a execução das penas, mesmo sendo jornalistas sem qualquer formação jurídica,. Entrevistado neste livro, Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, declarou aqui que “a pior coisa para os réus dessa ação foi a Globo ter perdido as olimpíadas para a Record”. De fato, no dia 29 de julho de 2012, as vésperas do início do julgamento, as buscas pelo termo “mensalão” no Google foram maiores do que por “Avenida Brasil”, então novela do horário nobre da Rede Globo. No dia 3 de agosto de 2012, um dia depois do começo do julgamento, as buscas pelo termo “mensalão” superaram em quatro vezes as buscas pela novela do horário nobre.
Vieram as condenações, 25 de 38 réus foram condenados. Estão na lista os políticos mais conhecidos, os publicitários e os banqueiros. Marcos Valério, apontado como operador do esquema de corrupção pelo Ministério Público, recebeu uma pena de mais de quarenta anos de prisão. José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil de Lula, teve a pena imposta de dez anos e dez meses.
O STF endureceu de tal maneira o tratamento penal dos réus da AP 470 que o recém-empossado Ministro Luís Roberto Barroso, em sua sabatina para indicação ao cargo, em junho de 2013, declarou que “o mensalão foi, por muitas razões, um ponto fora da curva”,. Nas redes sociais, o Ministro Joaquim era alçado à posição de justiceiro nacional por isto.
Sempre gostei de ler vários jornais e ao ligar a televisão ou ler um deles, comecei a perceber o tratamento que a mídia reservava aos casos penais. Cada edição dos principais jornais brasileiros traz, numa tacada só inquérito, julgamento e sentença, e entrega tudo isto à população como a verdade dos fatos, o caso do mensalão foi talvez o exemplo mais paradigmático disto. Sérgio Salomão Shecaira ensina que “a notícia não é nunca um espelho da realidade, mas sim um objeto construído, não obstante tentar parecer espelho dessa realidade”. O problema que busquei abordar aqui foi justamente essa construção diante do julgamento da Ação Penal mais importante da história da República, as pressões que a Corte sofreu, do principal meio de formação de opinião pública, a mídia, a partir da visão daqueles que talvez tivessem mais a falar, mas que foram os menos ouvidos, os advogados dos réus da AP 470.
Trial by media
Tão logo um caso penal surge, torna-se imediatamente matéria de jornal, a mídia “se converte em parte interessada em fomentar o consumo” nas palavras de Eugênio Bucci. Não há nada de ilegal nisto, contanto que a intimidade dos envolvidos seja respeitada pelos veículos de comunicação, o que dificilmente acontece.
Há, isto sim, imoralidade e sensacionalismo. Estabelece-se um conflito ético, com dois valores constitucionalmente consagrados em jogo nesta relação: a liberdade de expressão e a intimidade. A mídia, amparada na liberdade de expressão, noticia tudo o que pode sobre os casos penais, alegando que deve informar o cidadão. O indivíduo, de fato, tem o direito de ser informado e o repórter tem assegurado seu direito de se expressar, o liame deve ser a privacidade dos acusados.
Dalmo de Abreu Dallari ensina que “A imprensa deve ter o direito de ser livre, a fim de que possa manter o povo informado de todos os fatos de alguma relevância para as pessoas e a humanidade, que ocorrerem em qualquer parte do mundo. (...) Como é evidente, esse direito e essa garantia não são um favor ou privilégio aos proprietários dos veículos de comunicação de massa, mas têm sua justificativa precisamente no caráter de serviço público relevante, da imprensa. Mas dos mesmos fundamentos que justificam o direito e a garantia de liberdade decorre o dever de informar honestamente, com imparcialidade, sem distorções e também sem omissões maliciosas, sem a ocultação deliberada de informações que possam influir sobre a formação de opinião pública. Assim, a liberdade de imprensa enquadra-se na categoria de direito/dever, semelhante a outros de relevante interesse social, como o sufrágio.”
Este dever, porém, dificilmente é respeitado no Brasil. A imprensa se protege no seu direito de informar para reportar, distribuir “provas” e “evidências” nem sempre obtidas por meios lícitos (são profícuos os casos de escutas e grampos ilegais e os noticiários exibem a toda hora áudios editados de gravações que deveriam ser restritas ao judiciário).
A manipulação desses dados é também recorrente. Em fevereiro de 2013, a médica Virgínia Helena Soares de Souza foi presa em Curitiba acusada de administrar a eutanásia a pacientes internados na UTI de um hospital de Curitiba. O “Fantástico” trouxe o caso como reportagem principal na mesma semana com cópias das transcrições de grampos usadas para incriminá-la. Em uma delas, a médica teria dito a frase “preciso assassinar”. Cinco dias depois, a imprensa divulgou o erro, novas transcrições indicavam que a frase dita na verdade foi “preciso raciocinar”. Tarde demais.
Sobre isto, alerta Claus Roxin: “Uma falta de proteção no processo pode afetar também o acusado de maneira indireta, se pela pressão pública, criada pelos meios de comunicação, é acusado injustamente ou condenado a uma pena muito alta” Este tipo de julgamento, o trial by media, é marcado pelo imediatismo de informações e conclusões, nem sempre verdadeiras e quase sempre precipitadas. É o “descompasso entre o “tempo do jornal” e o “tempo da justiça” como trata Schreiber. A justiça tem seu próprio tempo. Marília de Nardi Budó nota que “Enquanto o processo judicial instituído é dotado de diversas fases e não pode ser rápido, sob pena de gerar uma decisão baseada em emoções, o processo midiático é frenético e inquisitório: o mesmo órgão investiga, acusa sem defesa, julga e executa a pena de execração pública, de destruição da honra, da vida privada, da imagem, da identidade e, é claro, da presunção de inocência”
Este “tempo da justiça” não se limita à duração do processo e não deve ser sinônimo de impunidade. Víctor Gabriel Rodríguez alertou para isto ainda durante o julgamento da AP 470: “Começam os votos dos ministros no caso do mensalão e digo, sem medo de errar, que o que vem por aí decepcionará grande parte da opinião pública. Não porque eventuais absolvições surjam na contramão do que as pesquisas indicam como vontade popular, mas apenas pelo início da fase enfadonha de todo o espetáculo midiático no qual se transformou o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o pouco interesse que a longa leitura de votos e as extensas discussões técnicas suscitarão nos espectadores não deveria induzir a uma impressão de justiça morosa e distante dos anseios da população.”
A interferência da mídia neste processo, porém, pode causar danos irreparáveis ao julgamento real. Ainda que existam figuras processuais como a do desaforamento, dificilmente um caso de grande repercussão encontrará lugar para ser julgado depois de exposto na grande imprensa e nos meios de comunicação modernos. Pior, os julgadores estarão irremediavelmente em contato com provas produzidas fora dos autos, que, apesar de sua origem duvidosa, podem ser capazes de contaminar seu juízo. Nas palavras de Flávia Rahal ocorre uma “carnavalização do processo”.
Não há como dissociar o julgamento da AP 470 de um autêntico Trial by media. Mesmo que dentre os julgadores encontre-se onze das figuras mais capazes da nação para fundamentar suas decisões e não se inibirem com qualquer tipo de pressão. Todos os juízes são homens e mulheres inseridos num contexto social de contato diário com a mídia, e isto atinge inclusive os componentes da Suprema Corte, acostumados com pressões de todo tipo.
E, ainda que em um julgamento, como foi o caso, estejam envolvidas pessoas públicas, há que se lembrar que mesmo elas têm vidas privadas, com família e intimidade que não podem ser destruídas diante de qualquer que seja a acusação. A Áustria traz o exemplo paradigmático de um jornalista condenado pela intensa cobertura que deu ao julgamento de um ex-ministro das finanças acusado de sonegação fiscal. Alfred Worm, o jornalista, foi condenado à multa que seria convertida em 20 dias de prisão no caso do não pagamento por ter veiculado uma série de reportagens a respeito do julgamento de Hannes Androsch, o ex-ministro das finanças da Áustria, que resultou na condenação de Androsch.
Como escreve Toron, citando Antoíne Grapon, “o trial by media, onde a controvérsia é reduzida a um espetáculo muito mais próximo da arte de tourear do que da discussão razoável, reforça o efeito de verdade em detrimento da verdade; a sedução em detrimento da argumentação”. E, quando valores tão caros como a intimidade estão em jogo, faz-se indispensável a verdade serena e livre de pressão para a tomada de decisões, seja o réu quem for.
3. Trechos de entrevistas com advogados de defesa
Alberto Zacharias Toron (Cliente: Dep. João Paulo Cunha):
Em sua opinião, alguns juízes podem se aproveitar da repercussão midiática de casos em que atuam como julgadores para galgar alguma fama?
Resposta - Com absoluta certeza. No caso do Ministro Gilmar Mendes, no caso Daniel Dantas aconteceu o oposto não é, ele ganhou uma má fama, como o Ministro Levandowski agora, que foi “fritado”. Mas o Fux aparece no Jornal Nacional, ele é alcandorado. Idem o Ministro Joaquim. Então pode sim.
Antonio Carlos de Almeida Castro (Kakay) (Cliente: Duda Mendonça e Zilmar Fernandes):
Qual é, na sua percepção, a importância do caso do mensalão para o cenário jurídico nacional?
Resposta - Eu acho que ainda é cedo para uma análise profunda. Em respeito ao STF nós devemos esperar a publicação do acórdão, dos embargos e, posteriormente, a publicação final do acórdão. Eu acho que o Supremo adotou um rigor excessivo nesse julgamento, o que é normal em casos de grande repercussão. É interessante notar, e eu advogo no Supremo há 30 anos, acompanho a jurisprudência do Supremo, a tendência é que nesses julgamentos haja uma certa exacerbação na aplicação da lei, um rigor maior, esquecimento de alguns princípios. Condenar ou absolver faz parte do jogo, mas você se distanciar de jurisprudência consolidada, de princípios garantistas é uma coisa que preocupa. Mas isso deve ser analisado ao final do julgamento. A história ensina que nesses casos, pela pressão da mídia, pelo acompanhamento diário, e ainda mais neste caso, em que a maior falta de sorte dos réus foi a Globo ter perdido as olimpíadas para a Record, porque aí ela pegou o mensalão para competir com as olimpíadas, em resumo, foi um show, a Globonews ficava horas e horas no julgamento, isso sem contar a transmissão direta. Eu acho que a tendência é depois o Supremo fazer um ajuste trazendo para o lado mais garantista, que é a tradição do STF.
Antonio Claudio Mariz ( Cliente: Ayanna Tenório):
Em diversos países ocidentais, a partir do final do século XX, verificou-se a atuação de grupos de defensores de interesses particulares, os chamados “gestores atípicos da moral”, como definido por Silva Sanchez, na elaboração das leis penais. Esses grupos de pressão atuam para a expansão do direito penal. Em que medida o senhor avalia a mídia como um desses grupos?
Resposta - Na verdade hoje você tem uma tendência, não só no direito penal, mas nas relações humanas em geral, de nortear e dirigir, na verdade até impingir modelos de comportamento via lei. No meu entender, lei não muda comportamento, o que muda comportamento é a educação, a ética e princípios morais. Isso vem ocorrendo em todos os setores da atividade humana, em especial no direito penal, onde se procura coibir comportamentos lesivos à sociedade através, e só através, da lei penal. O problema é que a lei penal atua pós-fato, raramente a lei penal inibe comportamentos: se inibisse, os países que adotam a pena de morte certamente teriam uma criminalidade muito baixa. Aqui no Brasil mesmo, há 40 anos eu assisto ao crescimento da violência e como resposta, o clamor social capitaneado pela mídia, no sentido de leis mais repressivas, mais duras, e o aumento da criminalidade esta aí, embora as leis penais também estejam mais rigorosas. Em verdade nós estamos enxugando gelo: o direito penal não coibe maus comportamentos, inibe muito pouco. O que nós temos que fazer é uma ação junto às causas do crime. A lei penal age pós-crime, nós precisamos trabalhar pra evitar o cometimento dos crimes. Esse movimento a que você se refere atingiu o Brasil em cheio e tem na mídia o seu grande porta-voz. Eu não sei se a mídia reproduz o que a sociedade pensa ou se a sociedade pensa o que a mídia coloca. A verdade é que há uma conjugação de interesses, de esforços, de posturas em relação ao crime. Como síntese disso, nós temos o discurso de que só a prisão é uma resposta efetiva ao crime. E a mídia conta isso, mostra isso e a sociedade aplaude. Nós tivemos um exemplo muito nítido disso nesse episódio lamentável de Santa Maria. Muito antes de qualquer investigação, ainda com os mortos sendo enterrados, já se prendiam pessoas para satisfazer a opinião pública. É uma perigosa distorção do direito penal. Nós estamos nos tornando um Estado autoritário, nazifascistóide-stalinista, de roupagem democrática, mas com um grande cunho autoritário.
Antônio Sérgio de Moraes Pitombo ( Cliente: Enivaldo Quadrado):
No seu entender, há ou não um conflito de poderes entre imprensa e judiciário?
Resposta - Não vejo um conflito de poderes, pelo contrário. O que existe, muitas vezes, é a subserviência de determinadas figuras do judiciário à mídia. Há os “juízes estrela”, nós tivemos esse fenômeno na Espanha do Gárzon, que é o clássico, a expressão “juiz estrela” é uma expressão espanhola. São juízes que se perdem no exercício da jurisdição, que perdem equidistância, perdem imparcialidade porque querem satisfazer interesses midiáticos, isso é um outro fenômeno.
Castellar Modesto Guimarães Neto (Cliente: Cristiano Paz):
Houve algum tipo de pressão por penas altas no caso da AP 470?
Resposta - Houve e de forma absolutamente clara. Principalmente em relação ao delito de quadrilha. Nada, pelo menos nesse ponto, justificaria o afastamento do mínimo legal, mas o Ministro Joaquim Barbosa foi enfático ao dizer, quando discutiam sobre as circunstâncias: “se nós ficarmos na pena mínima ela estará prescrita”. Isso foi uma demonstração mais do que clara para as defesas de que havia sim uma busca por penas maiores para que fosse possível atingir a satisfação da sociedade, que acompanhava pela mídia aquele julgamento. Foi, antes de tudo, uma pressão por penas altíssimas pelo aspecto simbólico para a sociedade. O processo teve traços absurdos ao longo de todo o seu desenrolar. E a maior pressão veio da mídia.
João dos Santos Gomes Filho (Cliente: Paulo Rocha):
O judiciário é aberto a essas pressões morais ou mantém sua independência?
Resposta - É muito difícil ao homem manter-se indiferente e ou distante das paixões (ainda que fomentadas pelo vazio do celuloide). O juiz, antes de ser julgador de causas, é cidadão inserido no contexto social de sua comunidade. Inegável que há pressão e que, vez por outra, o judiciário sucumbe.
Tome-se em exemplo a ação penal 470. Este julgamento foi o marco da mudança do entendimento do Supremo acerca da necessidade de se identificar o ato de ofício para a tipificação do crime de corrupção. Fazendo uso do eufemismo tolo de que bastava ao ato impugnado estar na abrangência das atividades do apontado, para restar tipificada a conduta, o Supremo pareceu (pareceu, insisto) atender à pressão que a extraordinária atenção midiática do tema mereceu.
Veja-se que só o fato da atenção das mídias ser extraordinária já revela o descompasso dogmático com o compromisso do estado com um direito penal mínimo.
A distância que o julgador deveria manter do caso é abreviada pela atividade direta das mídias, que subsumem a condição de parte, na grande maioria das vezes em favor de seus interesses econômicos, tisnando editar uma opinião publicada que trai a essência primaveril de seus postulados – consta do primeiro manual de redação da Folha de São Paulo, editado pelo próprio Otávio Frias Filho, que o repórter, quando julga, rouba este direito do leitor. E do juiz?
Se observarmos com uma atenção mínima e descompromissada com qualquer linha ideológica a atuação do decano da direita Merval Pereira, na cobertura do julgamento da ação penal 470, será fácil identificar o seu julgamento politizado do caso, fruto da necessidade política de uma condenação. Isso para não falarmos uma linha sobre as incongruências de suas intervenções, na medida em que Merval não tem conhecimento jurídico em ordem a sustentar o viés de suas observações políticas.
Merval partiu do pressuposto da culpa dos apontados. Num estado de direito minimamente democrático, há que se partir justamente da suposição da inocência.
Esta pauta (que não é privilégio de Merval, na medida em que também atendeu aos interesses de Arnaldo Jabor, Eliane Cantanhede, Élio Gaspari e outras tragédias mais) sempre esteve a serviço da hipótese condenatória. Isso fica tão evidente que bastou ascender à Corte Suprema um grande Constitucionalista, Barroso, para as mídias de direita passarem a tratar do viés da efetividade da hipótese de modificação do julgado, cingindo a este contexto uma visão nociva de Estado.
O judiciário está exposto, sim, às pressões morais da sociedade, notadamente quando as mídias tomam a defesa desta sociedade em suas mãos. Outro tanto, a grandeza do Poder reside, justamente, no número de vezes em que se resiste a esta pressão; quanto mais um juiz julgar de acordo com os autos e sua consciência, mais forte se torna o seu Poder judicante.
Luiz Fernando Pacheco (Cliente: José Genoíno):
Antônio Evaristo de Moraes Filho, na conferência “O advogado criminal: os casos penais e a mídia”, promovida pelo IBCCRIM, disse que nunca enfrentou nada como a mídia. “Em vários casos a prova e a lei estavam a meu favor, mas a maior dificuldade foi a mídia”. Chamou isso de opressão publicitária da mídia. Essa opressão existe ou não hoje?
Resposta – Sem dúvida alguma, de maneira fortíssima. Me lembro da estória de um cliente que disse “Dr. eu prefiro ser condenado pelo Supremo do que ser condenado pelo William Bonner” porque isso destrói a vida particular, a vida pessoal, a vida familiar, a profissional de uma pessoa que pode ao final ser inocente. A mídia apura, julga e dá a sentença [bate na mesa], tudo no mesmo dia, e isso leva a grandes injustiças.
Marcelo Leonardo (Cliente: Marcos Valério):
Em entrevista ao jornal ‘Valor Econômico’, publicada em 04/01/2013, o Professor Tércio Sampaio Ferraz Junior declarou sobre o julgamento do mensalão que “Vira uma novela. A Globo mostra os melhores momentos do julgamento com os ministros defendendo a democracia e repete várias vezes, do mesmo jeito que os melhores lances do Neymar. Até que ponto a repercussão precipitada de uma decisão interlocutória não afeta as decisões seguintes?”, na mesma entrevista, ele declarou ainda que “Na Inglaterra não se permite fotógrafo na Corte Suprema, câmeras de televisão nem pensar. A mais alta corte americana se reúne a portas fechadas e só torna pública a decisão final dos ministros. Até que ponto ter o princípio da publicidade, que é constitucional, transformado em show influencia o papel de quem julga?”. Sobre esses questionamentos do professor, o senhor acha que ocorre no Brasil uma subversão do princípio da publicidade?
Resposta - A publicidade exagerada é tão ruim quanto a ausência de publicidade. Essa realidade brasileira é, sem dúvida nenhuma, ímpar. Você ter julgamento do Supremo Tribunal Federal transmitido pela televisão, acompanhado pela sociedade em tempo real, não ocorre em nenhum lugar do mundo. E você tem isto exercendo influência sobre o julgamento, porque há colegas nossos que fizeram questão de anotar, guardar e divulgar na comunidade jurídica, episódios como um ministro dizendo a outro ministro, “o senhor não precisa desenvolver esse assunto não porque isso todo mundo sabe” e o outro ministro responder “eu estou falando também para os nossos telespectadores” numa demonstração inequívoca de que havia uma preocupação com a repercussão que o julgamento estava tendo em meios de comunicação social. Será que nós brasileiros somos mais inteligentes que todo o resto do mundo para levar a publicidade a este nível de divulgação dos julgamentos e repercussão? Quem acompanhou o julgamento do mensalão pode dizer, quando houve o recebimento da denúncia em agosto de 2007, uma notícia decorrente de fotografias feitas no primeiro dia do julgamento influiu no julgamento a partir daquele dia [referência à troca de mensagens entre os Ministros Ricardo Lewandowski e Carmen Lúcia].
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