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quarta-feira, 23 de março de 2011

Wilson Klain - No turbilhão do tempo




No turbilhão do tempo

Wilson Klain
A metrópole contemporânea aparece aos seus olhos, antes de mais nada, como uma grande praça mercantil, onde se negocia o ser humano (BOLLE, Willi, "Introdução à poesia de Brecht" 1987).
No final do século XIX o escritor austríaco Robert Musil escreveu:
“Quem ainda pode estar interessado naquela envelhecida conversa inútil sobre o bem e o mal quando se estabeleceu que o bem e o mal não são absolutamente “constantes”, mas “valores funcionais”, de tal sorte que a bondade das ações depende das circunstâncias históricas, e a bondade dos seres humanos da capacidade psicotécnica com que se aproveitam de suas qualidades?”
Havemos de considerar que o tempo passou... mas a questão, a inquietação, não.
Desesperador? Também não.

Pensemos que a história não vai a parte alguma. Ela talvez avance, em todo caso se mexe, mas não tem outra finalidade, a cada instante, senão o passo que dá. Para frente? Para trás? Depende do nosso ponto de vista e da orientação de nossos desejos.
Assim, o que podemos fazer hoje, em meu ponto de vista, é tecer considerações acerca desses passos da história. Mais exatamente sobre os passos que estamos dando. É, talvez, pensar a partir da idéia de que a temática da moralidade implica perceber que temos problemas antigos tomados de formas diferentes na atualidade. E isto, parece-me um atenuante. E ainda, outros problemas que escritores do passado mal ou sequer tocaram porque, tais problemas, em sua época não eram articulados como parte da experiência humana.
A impressão que podemos ter da atualidade, pelo menos quando se assiste à televisão, ou se lê um jornal “sangrento” é que a moral é algo em desuso. Parece não fazer parte do roteiro do dia. É por isso que se ouve, também, que vivemos uma crise moral, um bombardeio sem fim aos valores morais. Poderíamos quase afirmar que o sujeito moral tem seus dias contados. Aquele que preza o ser, não é. Parecemos estar aprendendo a desprezar a vida e a liberdade.
Nossos valores estão trôpegos, não encontram aderência. Parecem seguir errantes. Somos surdos ao ruído, cegos à imagem e insensíveis ao outro. Bem feitores são confundidos com assaltantes. É como se víssemos e aprovássemos o melhor, mas praticássemos o pior.
Nossos filhos são a expressão direta do turbilhão do qual somos portadores. Queimamos pessoas e dizemos que o azar foi daqueles que foram identificados. Aquele que ardia não tinha o estatuto de ser. Não era ele, se quer, representante da cultura daqueles que o queimaram. A relevância cultural estava em chamas. Ardia e sucumbia diante do ato. E vejam, esta observação não se origina no fato, reconhecido a posteriori, de que se tratava de um índio.
A fumaça proveniente da fogueira manchava o céu moral. Obnubilava as referências morais. Obscurecia a ética das relações a ponto de fazê-la desaparecer. A moral mínima — de respeito à vida — transformava-se em cinzas. Lançadas ao vento geravam a confusão: a lei é perversa.
Ainda, em outro campo, soldados, igualmente tomados por uma confusão moral, confundem a população. Eles são representantes da lei ou são a própria lei? Os símbolos morais ainda valem ou só conseguimos nos relacionar com o absoluto?
O que se pode concluir, por enquanto, é que a errância dos valores promove a errância do ser. Ele não se constitui. Parece ser uma criança solta numa loja de brinquedos: o som a atrai; o mecanismo a atrai; a forma a atrai; enfim, ela é pura excitação; pulsante. Ao mesmo tempo nada a satisfaz. É uma fonte de ansiedade. E assim, guiada pela possibilidade de satisfação, de ser pelo ter, sai errante.
Isto parece ser o efeito da mídia. De uma “ideologia do bem estar” , como dizia Contardo Calligaris, promovida pela mídia. É preciso a qualquer custo estar satisfeito. Conseqüência, é que toda autoridade, toda tradição e toda renúncia à satisfação imediata dos desejos são vistas como autoritarismo e repressão.
Não podemos dizer de uma sociedade que seja sem valores. Mas sim de uma humanidade, quase, sem valor. Podemos falar de um ser humano nadificado: transformado, aos olhos do outro, em nada. Nada significa que a existência não tem valor; que a semelhança humana nada significa. Que não nos reconhecemos pela humanidade que portamos, mas só por qualquer outra coisa. Uma importância que não está no ser, mas no ter.
Pensemos: Qual a diferença em se ter uma TV de 14 polegadas ou uma de 16? Ou uma de Plasma? Do ponto de vista do tamanho e da imagem que você verá, nenhuma. Mas do ponto de vista daquilo que ela representa no seu patrimônio, há muita diferença. Isso é mídia, consumismo. O valor do meu ser fica determinado pelo tamanho da TV, a marca do automóvel, a roupa que uso, etc...
Trata-se de um pretenso respeito à necessidade, que nada mais é do que a inculcação dos hábitos que formam o perfil psicológico do consumidor. Agora, se isto fosse bom, convenhamos, não haveria um código para protegê-lo.
Estamos à mercê da sorte dos impulsos. Eles reinam absolutos. Deixar brotar a vontade e, satisfazê-la. Esta é a regra.
Nossas famílias foram enganadas. Constranjo-me em dizer isso, mas a Psicologia foi instrumento deste engano. Nas décadas de 60 e 70, os pais foram sacudidos em suas crenças de como educar os filhos. Essas famílias foram introduzidas numa espécie de decadência da autoridade e dos ideais.

Esses pais tiveram suas convicções abaladas por um batalhão de técnicos que não fizeram senão usurpar-lhes a competência para educar seus próprios filhos, neutralizando os instrumentos que herdaram de seus pais e que, bem ou mal, conquistaram para si.
Nossas crianças, ou melhor, os filhos das décadas de 60 e 70 — a maioria de nós — construíram e constroem ainda uma sociedade permissiva onde a lei do mercado está no lugar da palavra e da existência do pai.
Uma lei perversa, onde o visível, o material, toma o lugar do invisível. Valores subjetivos são trocados pela oscilação da bolsa de Tóquio ou Nova York, ou a cotação do dólar, ou ainda, a taxa SELIC.
É a experiência infantil pulverizada na sociedade, reinando absoluta, como se ainda não tivéssemos superado nossa primeira infância. Como se a lei do absoluto, da satisfação plena, vigorasse sem rival.
A esta experiência deve suceder aquela em que o pai representa a lei da cultura. Ao mesmo tempo que liberta o filho do aprisionamento da satisfação plena e o inscreve  num campo onde a produtividade, a criatividade, o outro vigoram. Em suma, a terra da lei. A lei que pode ser vencida por métodos que tenham como premissa a garantia do projeto humano. Devemos saber que não são as leis que fazem dos homens justos; mas sim que são homens justos que fazem leis justas.
Todo este cenário, estes detalhes da vida atual, indicam a razão de nos debruçarmos sobre esse tema. Pensar a respeito da ética, claro que guardadas as devidas proporções, parece-me uma proposta de saúde. De saúde mental.

O que não podemos negar é que quando pincelamos este cenário, quando rascunhamos algumas manifestações da vida atual, o que concluímos imediatamente é que se trata de um habitat. Um habitat mental, nas palavras de G. Gusdorf. Uma morada criada por nós.
Quando falo de habitat, de habitação, devo reconhecer na palavra sua raiz que a liga diretamente a hábitos, costumes. Na etimologia da palavra, Ethos se refere tanto aos costumes e hábitos como a morada. Portanto, hábitos e habitações compartilham a mesma raiz.
Assim, o que temos são hábitos, modos de ser, que constituem nossa morada. Nosso ambiente. Um ambiente ético.
Quanto a esse ambiente, recorrerei a Winnicott. A mãe como “ambiente facilitador”  remete-nos aos cuidados oferecidos à criança. Mas é importante notar que se trata de uma oferta que não se limita à entrega de cuidados externos, mas sim, e especialmente num momento onde a separação eu/não-eu, não se fez, a criança experimenta isso no ambiente materno.
Esta experiência infantil, como sabemos, é extremamente importante para o futuro dessa criança. A base ai constituída servirá de referência em diversos momentos de sua vida.
Há sempre ocasiões em que partes do ambiente social e físico nos oferecem — gratuitamente — um certo resgate dessa relação primária. Basta observarmos que uma das manifestações dos ataques de angústia, vivida por algumas pessoas atualmente, é o pedido por estar acompanhadas de pessoas por quem elas têm muita confiança e carinho. Sentem-se melhor em casa, na morada. Parece tratar-se de um pedido por um ambiente seguro, um ambiente primário.
Em situações críticas, como por exemplo, uma catástrofe, ou mesmo, doença grave, é possível observar uma regressão ‘normal’, e mesmo necessária à cura, a este ambiente primário.
Entretanto, havemos de verificar que no tratamento dessas situações graves é comum ser oferecido ao paciente regredido um atendimento exclusivamente técnico. Algo como se pudéssemos dizer que a mamadeira é completa, em detrimento do seio, que se apresenta com um entorno. Winnicott chamará a essas provisões de “mãe-objeto” e “mãe-ambiente”, onde ambas são necessárias ao desenvolvimento e, podemos dizer, necessárias ao atendimento do doente grave.
Nosso habitat, entendo, apresenta-se desprovido de “mãe-ambiente”, em alguns casos, diria que inexistem ambas as provisões. Entretanto, nosso propósito nesse espaço, parece-me ser o de refletir a respeito da nossa morada especialmente nesse particular, a mãe-ambiente.
Assim quando falamos de ética parece-me indispensável pensarmos nesse ambiente que facilite o desenvolvimento do indivíduo. Um ambiente rico em saúde mental. E esta parece ser a seara do psicólogo.
Winnicott afirma que o desenvolvimento emocional ocorre na criança se se provêem condições suficientemente boas diante dos impulsos que vêem do interior dela. Deste modo, de acordo com a possibilidade de uma provisão suficientemente boa, estamos pretendendo a oferta de condições para o desenvolvimento integral da criança. Não sendo assim, o que encontramos é um mundo interno infantil que não encontra recepção, mantendo-se, então, como força intensa no interior da criança. O psicanalista inglês afirma: “As forças ficam contidas no interior da criança e de uma forma ou de outra tendem a destruí-la”.
Deste modo precário o que temos é saúde mental deficiente, desenvolvimento emocional comprometido, que resulta em imaturidade.
Para encerrar, gostaria de afirmar que o cenário que construímos carece de reflexão, carece de acolhimentos. Mas, a meu ver, não carece de uma multiplicidade de técnicas e instrumentos. Corremos o risco de tomar o pedido, a demanda, como se fosse o tratamento. De outro modo, a multiplicação de seitas, de práticas alternativas — não só na psicologia —, são o pedido de acolhimento das manifestações. Nessa mesma direção, somente para introduzir o assunto, a formação em psicologia não carece de novas técnicas, não que elas não possam ser ouvidas, mas nesse momento, parece-me necessário uma dose de escuta na formação do psicólogo. Caso contrário, as vozes internas dos alunos, aparentemente caladas pelas teorias e técnicas, se manifestarão de maneiras a não contribuir com o desenvolvimento emocional de cada um deles e conseqüentemente de seus pacientes ou clientes.
Só pode construir uma morada, quem minimamente tem uma. Assim, precisamos reconhecer nossa morada primária, se pretendemos oferecer outras.



WILSON KLAIN
Psicanalista, Mestre em Psicologia
Clínica pela PUC – SP,
Membro do Departamento de Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae 


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